segunda-feira, 26 de julho de 2010

Os partidos não têm dado conta da tarefa

Para Ivan Valente, apesar da dura realidade das condições de vida da maioria do povo brasileiro, não há um processo de indignação organizada em marcha

21/07/2010

Nilton Viana

da Redação

É necessário aprofundar o conhecimento da nossa realidade e a relação da esquerda com as mais profundas reivindicações do povo brasileiro por mudança social. Esta é uma das constatações do deputado federal Ivan Valente (Psol-SP). No entanto, segundo ele, é preciso entender que estamos numa realidade mutante, com a rapidez trazida pela globalização e a velocidade das comunicações.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Valente defende que a falta de um forte movimento social e a desmobilização da força social de mudança, que ocorreu neste período – aliadas à fragmentação e à ainda pouca expressão de outras candidaturas de esquerda – realçam o quadro de dificuldades de uma alternativa verdadeiramente de esquerda que acumule rapidamente na direção da transformação social. Para ele, os partidos políticos não têm dado conta dessa tarefa, ou por opção ou por falta de condições objetivas e também erros de avaliação. E afirma: a unidade das forças populares é uma questão vital no processo de luta de classes.

Brasil de Fato – Como parlamentar, você tem acompanhado as proposta de alteração do Código Florestal brasileiro. Quais os interesses em jogo nesse debate?

Ivan Valente – Está em curso no país uma tentativa perigosa que pode reverter mais de cinco décadas de legislação ambiental no Brasil. O relatório final apresentado pelo deputado federal Aldo Rebelo [PCdoB-SP] e aprovado na Comissão Especial do Código Florestal, se passar pelo Plenário da Câmara, representará um verdadeiro retrocesso na proteção do meio ambiente em nome dos interesses dos ruralistas. O texto aprovado comprova a farsa do desmatamento zero que os ruralistas pretendem fazer crer a população. Fica explícita a autorização para novas derrubadas de árvores, nos mais diferentes biomas. O texto também possibilita a anistia completa aos desmatadores que cometeram infrações antes de 2008. Ou seja, premia aqueles que historicamente desrespeitaram o meio ambiente, além de insinuar que desenvolvimento só se faz com destruição da natureza.

As mudanças propostas partem de premissas equivocadas para defender uma brutal mudança na legislação ambiental e colocar o Brasil no rumo do atraso e da devastação. Entre elas, a necessidade de ampliar a produção de alimentos para o mercado interno, o que justificaria a ocupação de todas as áreas agricultáveis do território nacional – inclusive as de reserva legal e de proteção permanente. A verdade é que precisamos de outro projeto de desenvolvimento. Nossas florestas não são balcões de negócio, são bens de interesse comum.

Como você vê o projeto que regulamenta os impostos sobre as grandes fortunas?

O imposto sobre as grandes fortunas está previsto na Constituição de 1988, mas nunca foi regulamentado. Pelo projeto do Psol, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em junho, o piso para a cobrança seria de R$ 2 milhões, definindo como patamar de fortuna. As alíquotas seriam de 0,3% para patrimônios acima de R$ 2 milhões; 0,7% para patrimônios acima de R$ 10 milhões; e 1% para patrimônios acima de R$ 50 milhões. O objetivo é desonerar o consumo de bens pela população mais pobre, como medicamentos e itens da cesta básica, mudando o paradigma brasileiro e atendendo o princípio da capacidade contributiva, ou seja, quem tem mais deve pagar mais.

Segundo o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], os 10% mais ricos concentram 75% da riqueza do país. Eles também são os que menos pagam impostos proporcionalmente à sua renda. Dados da Receita Federal divulgados recentemente mostram que a arrecadação do país cresceu justamente devido aos tributos que incidem sobre o consumo e a renda do trabalho. Já os tributos incidentes sobre a renda do capital caíram R$ 131 milhões. Ou seja, a carga tributária brasileira é alta e mal distribuída. É urgente tributar de forma mais forte a riqueza e a propriedade, para poder tributar menos o salário e o consumo.

O problema é que, no Congresso, o capital é que manda. Historicamente, os donos das grandes fortunas impediram que esse imposto entrasse em vigor. As dificuldades começaram na Assembleia Constituinte, em 1988. Enquanto outros imposto, como o de renda, podem ser regulados por lei comum, esse precisa de uma lei complementar, que tem tramitação especial e precisa ser aprovado em plenário por 2/3 dos deputados. É uma batalha, portanto, que está apenas começando, mas estratégica para o país.

E seu projeto de lei que proíbe o capital estrangeiro nas instituições educacionais?

Nosso projeto de Lei nº 2.138/2003, que proíbe o capital estrangeiro nas instituições educacionais brasileiras com fins lucrativos, parte de um princípio básico, fundante da nossa nação: educação não é mercadoria. A Constituição Federal, em seu artigo 205, afirma que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família. No entanto, a educação brasileira vem sendo desnacionalizada, reforçando e ampliação e a mercantilização do ensino.

Hoje, as empresas que buscam entrar nas instituições de ensino querem é fazer negócios, não possuem um projeto educacional e, por isso, não primam pela qualidade do ensino, só pelo valor das mensalidades. Nossas universidades não podem se sujeitar a imposições do capital privado estrangeiro. O capitalismo tem uma ideologia bastante diferente, em desacordo com o projeto de nação que queremos construir. Daí a importância desse projeto. Por conta de manobras de grupos detentores do capital, o PL está parado na Comissão de Educação e Cultura, mas vem ganhando apoio entre setores da esquerda, e a luta é para aprová-lo o quanto antes.

Passada a Copa, é hora do país encarar seus graves problemas. E teremos pela frente eleições para cargos importantíssimos, como o de presidente da República, Congresso Nacional, governos estaduais e assembleias legislativas. Como você avalia o atual quadro eleitoral?

Vemos uma superpolarização pelo alto, entre as candidaturas do PT e do PSDB. São projetos que não têm diferenças essenciais no tocante à política econômica e à forma como sustentam a governabilidade, com alianças heterodoxas, pautadas pelo abandono de um projeto de transformação social mais profunda no nosso país. Embora haja diferenças entre os dois, particularmente na política internacional e em algumas políticas compensatórias. A opção Marina Silva [PV] não consegue ser alternativa porque não se propõe, não tem condições nem movimento social por trás para polarizar essa disputa. Já o Psol, apesar de ser um partido em construção, tem uma proposta alternativa de transformação social baseada num programa capaz de empolgar grandes setores da população, trabalhando com ética na política e acreditando na força dos movimentos sociais e da participação popular. Temos demonstrado isso na prática, com nosso programa, conduta e esforço organizativo.

Pela primeira vez, desde a redemocratização do país, a esquerda irá enfrentar uma eleição em que Lula não será candidato. E desde 1989, a eleição de Lula tem sido um fator de unidade da esquerda, sobretudo antes de 2002. Como você avalia esse cenário?

A saída de Lula do cenário político, com todo seu carisma e simbologia, deixa mais nítidas as propostas em jogo. As relações do PT com o grande capital – assim como da oposição de direita, capitaneada pelo PSDB, que também disputa ser a representação do grande capital e da política econômica neoliberal – mostram que os projetos são semelhantes. Eles continuam comprando a confiança do mercado a um preço muito alto para a classe trabalhadora. Não é à toa que a campanha Dilma coloca Palocci como seu grande articulador, e os tucanos tentam exacerbar ainda mais a política do Estado mínimo. A consequência direta dessa opção do governo Lula foi uma parte da esquerda buscar novas saídas para a efetivação do programa que incendiou corações e mentes ao longo de duas décadas. O Psol é consequência dessa ruptura.

Ao que tudo indica, no atual cenário eleitoral, não há nenhuma perspectiva transformadora, anticapitalista, capaz de enfrentar os grandes desafios do ponto de vista da esquerda. A fragmentação da esquerda favorece esse quadro?

Num país como o nosso, de grande concentração de renda, terra, riqueza e poder, políticas sociais de baixa intensidade têm um efeito considerável de conformação social, que dá ao governo o mote continuísta. A falta de um forte movimento social e a desmobilização da força social de mudança que ocorreu nesse período– aliadas à fragmentação e à ainda pouca expressão de outras candidaturas de esquerda – realçam o quadro de dificuldades de uma alternativa verdadeiramente de esquerda que acumule rapidamente na direção da transformação social. O que não invalida nem desmerece o esforço necessário que vem sendo feito por vários setores da esquerda – particularmente do Psol – de tentar resgatar um programa e uma prática transformadora capaz de mobilizar o povo e apontar rumos para o socialismo.

Quais são, na sua avaliação, os principais problemas do povo brasileiro e quais desafios estão colocados hoje para a esquerda?

Problemas estruturais, como a falta de um sistema nacional de educação, com um plano nacional e investimento maciço na educação pública, mostram nosso imenso atraso ainda na questão do ensino, no qual os avanços foram ínfimos. Basta ver o valor do piso nacional dos professores, estabelecido no governo Lula, e a manutenção dos vetos ao gasto público de 7% do PIB para o setor, feitos por FHC. Já na saúde, permanece o sucateamento do SUS, o avanço do setor privado, da terceirização e a falta de recursos públicos, além da não regulamentação da emenda 29.

Outro problema central é a não efetivação da esperada reforma agrária. O governo Lula, pela governabilidade, cede sempre ao agronegócio e aos ruralistas. Enquanto isso, 36% do orçamento da União em 2009 foram gastos no pagamento de juros e amortizações da dívida pública, enquanto a educação recebeu menos de 3%; a saúde, menos de 5%; e a reforma agrária, menos de 0,1%. Inverter prioridades e favorecer de fato a área social, que garante direitos, e a infraestrutura do país, que gera emprego e distribui renda, é um dos maiores desafios da esquerda.

O PT construiu, em 1986, o Programa Democrático Popular. Você considera esse programa atual?

O Programa Democrático Popular é um patrimônio da esquerda brasileira. Uma proposta que defende reforma agrária; democratização radical dos meios de comunicação de massa; direitos sociais dos trabalhadores; distribuição de renda como alavanca de outro projeto de desenvolvimento, para romper a dependência; suspensão do pagamento da dívida pública, com auditoria para inverter a lógica de predomínio do mercado sobre a vida dos cidadãos; defesa da soberania nacional e política anti-imperialista, controle de setores estratégicos pelo Estado; desenvolvimento sustentável e política ambiental, visando o futuro, e não as necessidades imediatas do sistema agrícola e agrário de exportação de commodities; promoção e garantia dos direitos humanos e da diversidade cultural do país; e combate a todas as formas de opressão. Tem uma imensa radicalidade para atacar as bases do atual sistema, organizar e mobilizar o povo e abrir portas para a superação definitiva das iniquidades capitalistas, rumo a uma sociedade com justiça e igualdade social. A América Latina, com exemplos sobretudo da Bolívia, Venezuela, Equador e Paraguai, tem demonstrado a imensa atualidade desse programa.

A esquerda brasileira tem o conhecimento verdadeiro da realidade social do país?

Grandes estudiosos, pensadores partidários e intelectuais orgânicos como Florestan Fernandes, Celso Furtado, Caio Prado Junior, Paulo Freire, Antonio Candido e Darcy Ribeiro nos forneceram bases e contribuições importantes para o conhecimento da realidade brasileira. Aliado às experiências e história de luta da classe trabalhadora e às lutas de resistência do povo brasileiro, esse conjunto de ideias são um excelente ponto de partida para a esquerda. É preciso entender, no entanto, que estamos numa realidade mutante, com a rapidez trazida pela globalização e a velocidade das comunicações. Isso reforça a necessidade de aprofundar o conhecimento da nossa realidade e a relação da esquerda com as mais profundas reivindicações do povo brasileiro por mudança social.

A seu ver, os instrumentos políticos da esquerda brasileira hoje, principalmente partidos políticos, têm sido capazes de fazer frente à atual realidade brasileira?

Apesar da dura realidade das condições de vida da maioria do povo brasileiro, não há um processo de indignação organizada em marcha. Os partidos políticos não têm dado conta dessa tarefa, ou por opção ou por falta de condições objetivas e também erros de avaliação. É preciso levar em conta o nível de organização e consciência real dos trabalhadores, se engajar nas lutas que movimentam o povo em torno de direitos e, num processo pedagógico de luta, mobilização e organização, atingirmos um patamar de pressão social capaz de viabilizar mudanças sociais sempre prometidas e nunca realizadas em nosso país.

E como você vê a atuação dos movimentos sociais no Brasil frente a esse cenário?

O Brasil viveu, nos anos de 1980, um momento importantíssimo de ascenso dos movimentos populares e sociais e da sua organização, com a formação da CUT e do próprio PT. Foi um momento significativo de acumulação de consciência e força social. Posteriormente, vivemos um período de declínio, e hoje o que existe de fato, no geral, é uma baixa dos movimentos sociais – apesar de significativos momentos de resistência, seja na luta pela reforma agrária, contra a lógica do Estado mínimo, com greves e mobilizações, na luta por garantia de direitos e contra a discriminação, ainda insuficientes para uma arrancada rumo a transformações sociais mais profundas. Isso só reforça o papel dos setores de vanguarda e dos movimentos sociais na construção desse processo.

Como avançar na unidade das forças populares?

A unidade das forças populares é uma questão vital no processo de luta de classes. Mas a construção da unidade é um processo que deve aliar tolerância política, sabedoria, manutenção de princípios, vontade política, acreditar na democracia, na tomada de decisões e consciência de que, com o crescimento das lutas, a unidade se torna mais imperiosa e aumenta a responsabilidade de cada força política na construção dos interesses sociais e nacionais. Os verdadeiros socialistas devem perceber que o fato de vivermos um momento de descenso aumenta nossa responsabilidade com a construção de um futuro que interessa a todo o povo brasileiro.



Ivan-Valente_Janine-Moraes-

Ivan Valente é deputado federal por São Paulo e líder da bancada do PSOL (Partido do Socialismo e Liberdade) na Câmara dos Deputados. É titular da Comissão de Relações Exteriores e suplente da Comissão de Defesa do Consumidor. Integra a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do MST, a Comissão Especial do Código Florestal e foi proponente da CPI da dívida pública. Compõe a Direção Nacional do PSOL.

http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/os-partidos-nao-tem-dado-conta-da-tarefa/view

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